terça-feira, 28 de agosto de 2018

A noite na Povoa de Varzim


A estória de hoje passou-se quando ainda fazia cabotagem ao longo da nossa costa e arribei ao pequeno porto da Povoa de Varzim para largar uma carga de vinho alentejano que tinha carregado em Sines.
O navio era pequeno e amarrei com alguma dificuldade num cais com acesso a camiões cisterna, que ali vinham colher o vinho, bom por sinal.
Madame Aragão, minha extremosa e dedicada esposa, à época a residir no Porto, decidiu vir passar a noite a bordo, já que eu teria de sair no dia seguinte de manhã, e também porque queria testar o jipe novo na curta viagem até à Povoa.
Pelas três ou quatro da manhã, Madame Aragão teve um dos seus habituais ataques de pânico e não havia nada que a sossegasse.
O camarote seria demasiado pequeno, no seu entender, a claustrofobia e a ansiedade terão feito o resto. Não podia ficar ali nem mais um minuto. Afogueada, levantou-se e quis sair para o cais para respirar, que na camarinha não era capaz.
Lá saí também e de jipe fomos até ao centro da Povoa, tendo de seguida começado a procurar um café ou uma padaria aberta para nos sentarmos e almoçar qualquer coisa.
Mas eram quatro da manhã, a cidade dormia e  estava fechada.
Depois de alguns quarteirões percorridos a pé, lá chegamos à antiga estação de comboio da linha da Povoa, que tinha sido convertida num bar ou café, não dava bem para entender.
Tinha janelas  até ao chão, da rua dava para ver o seu interior.
-- Este tem um ar familiar, disse Madame Aragão, está alí um Pai e um Filho naquela mesa.
Entramos e o pai e o filho eram, na verdade, um gajo com ar de azeiteiro  e um anão, sendo que este estava a fumar um charuto quase maior que ele. A casa familiar era uma casa de putas, embora com aguas correntes, quentes e frias.
Madame Aragão, ao sentir-se enganada, armou uma peixeirada das antigas, quis falar com o gerente e insultou o anão e o seu charuto, quase maior que ele, se ainda não disse.
A coisa agravou-se  e apareceram os seguranças que nos colocaram sem mais no olho da rua e se preparavam para nos dar um arraial de porrada, o que só não aconteceu porque passava àquela remota hora, no passeio do outro lado da rua, o meu amigo Mestre Tobias, que ia para a pesca da sardinha e tinha de sair com a maré.
Acontece que o mestre Tobias era tio, em segundo grau, de um dos seguranças, e pôs fim ao que já se adivinhava vir a ser uma noite memorável de pancadaria e nódoas negras.
Bem, a pequena ajuda acabou por me custar dois garrafões do tinto alentejano que estava ainda a bordo, mas valeu a pena, que não tinha alguma vontade de ser esmurrado, ainda por cima por causa de uma atitude impensada de Madame Aragão, minha extremosa e dedicada esposa.

sábado, 27 de janeiro de 2018

Os Submarinos do Cabo Sileiro



Largamos do porto de Vigo pela fresquinha , com as cabeças meio toldadas pelo Ribeiro que acompanhava os variados de marisco do Mercado da Pedra.
O carregamento de alvarinho que embarcámos para o porto de Casablanca, em Marrocos, vinha a granel e prestava-se a uma ou outra purga, só para avaliar a qualidade do produto e, naturalmente, do transporte.
Saímos da Ria de Vigo pela Barra Sul e, pouco antes das Cies, entreguei o comando nas mãos do meu imediato nessa viagem, já muitas vezes percorrida, quase de olhos fechados a faziamos.
Pedi um gin ao cozinheiro e, como fosse cedinho, sentei-me na cadeira da ponte, a desfrutar o Mar e a ligeira brisa que soprava de sudoeste.
De repente, o imediato sr Hortas interrompe a minha meditação e grita-me, sobressaltado:
- Sr Comandante Vasco, estamos a ser atacados por submarinos, parecem soviéticos….
Nem me mexi, submarinos soviéticos, ali, à saída da Ria de Vigo, o Ribeiro estava fresco e, ao que parece, forte.
- Comandante, temos de sair do rumo, os submarinos estão a submergir…
Bem , resolvi dar alguma atenção ao que se estava a passar e estarreci, estávamos em rota de colisão com os Lobos, os recifes do Cabo Sileiro.
Corrigi de imediato o rumo, passando uma tangente muito próxima aos Lobos.
--Sr imediato, então isto é coisa que se faça, o sr não sabia desses recifes, leva-me o navio para assim tão perto ?!!!!

O meu imediato quase chorava, contou-me então que na véspera o Ribeiro lhe tinha caído muito mal, subira-lhe à cabeça, tinha apanhado uma grande cabra, como dizia, e tinha decidido ir dar uma volta numa baleeira do nosso navio que estava na agua aquela hora.
Ao tentar entrar para a baleeira, já com o motor em marcha, caiu à agua, foi arrastado pela lancha agarrado a um cabo, ele e a cabra, e viu-se inquietado para subir.
A cabra, no dizer do imediato, olhou para ele e, com olhos doces, ter-lhe-á dito, sobe tu, apoia-te em mim, que eu sacrifico-me por ti.
A cabra terá morrido para salvar o meu imediato, nas palavras dele.
Enfim, fosse porque fosse, o ter raspado, ou quase, com o meu navio pelos Lobos não era defensável e preparei-me para o castigar.
- O Sr Comandante não se esqueça que eu sou primo em segundo grau da cunhada da mulher a dias do Mestre Tobias, disse-me ele, impante.

Quilhou tudo, nada podia fazer, tantos eram os favores que devia ao Mestre Tobias.

Mesmo sem estar presente, o Tobias lixou-me mais uma vez, Phoenix.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Madame Aragão


A maior parte das minhas horas passo-as no Mar, a enfrentar tempestades e ventos furiosos, mas nada se assemelha às tempestades de Madame Aragão, minha afectuosa e irredutível  esposa.
A história que agora conto passou-se numa das minhas muito raras estadias em terra, num passeio pela cidade de Aveiro, não longe do Solar Aragão.
Pois a Madame Aragão apeteceram caranguejos para acompanhar umas cervejinhas, naquela noite quente de Maio.
A cidade estava calma, ainda não tinha chegado a invasão habitual de turistas, e a noite quase abafada naquele fim de Primavera.
Os bares da cidade não tinham caranguejos. Cerveja ainda se arranjava, também era o que faltava não se arranjar, mas caranguejos, não, nem um.
Corremos tudo o que era bar e a Madame Aragão estava, como sempre, inflexível, a cerveja só seria bebida com os necessários caranguejos, vermelhinhos, salgadinhos, a acompanhar.
Finalmente lá conseguimos encontrar um bar que tinha caranguejos. Sentados ao balcão, esperámos que nos servissem os finos e os caranguejosinhos.
Mas, hélás, os caranguejos estavam completamente xôxos, sem nada no interior, era só a casca.
Madame Aragão, com alguma vergonha minha, armou alí, no meio do bar, uma discussão com o empregado, dizendo que não eram caranguejos que se apresentassem, que não tinham mais que a casca, que era um roubo sem precedentes apresentarem caranguejos daquela maneira.
O gerente, sentindo o mal estar naquele sector do balcão, aproximou-se e, inteirando-se do ocorrido, dirigiu-se a Madame Aragão:
--Queira desculpar, sabe que a época balnear ainda não começou, por isso não tem morrido muita gente nas praias e os caranguejos estão à mingua. Se vier cá lá para o mês que vem, é muito possível que já tenha havido alguns afogamentos e aí os caranguejos estarão, por certo, mais cheínhos.
Madame Aragão não achou piada ao gerente e atirou-lhe com a mala, volumosa, á cabeça, dando origem a uma zaragata homérica, que só acabou com a chegada da bófia e com o nosso encaminhamento para a esquadra.
Safou-nos o Mestre Tobias, que passava por acaso por alí perto e, vendo a ramona a passar, como fosse cunhado do sub chefe da esquadra, meteu-lhe uma cunha e conseguimos vir para casa logo de seguida.
Custou-me, no entanto, a sua intervenção, duas caixas de PapaFigos 2011 que tinha reservado para uma doença e que ainda estavam na minha dispensa

domingo, 7 de janeiro de 2018

A Ciência



Depois de alguns meses em casa, desembarcado, um amigo convidou-me a assumir o comando do MEXILHÃO, o navio de investigação oceanográfica do estado, que fazia viagens com professores   das universidades e uns quantos mais assistentes, viagens essas pouco mais que costeiras.
Não era bem a minha vocação, sou Capitão de Longo Curso, mas já me roía o bichinho do Mar e dois longos meses de amarração ao cais cá de casa já me traziam enjoado e com necessidade de tomar calmantes para dormir, já me fazia saudade o ronronar da máquina à noite, as ordens descompassadas dos meus imediatos, os petiscos do 1º de cozinha e as alabardisses do Mestre Tobias.
Aceitei, colocando como condição a escolha da tripulação mais directa, o imediato o sr Bolha e o cozinheiro o sr Jonas.

No dia aprazado, umas horas antes da  ETD acordada, fui ao portaló receber o corpo docente e investigante.
Nada mais nada menos que sete catedráticas de oceanografia das universidades de Aveiro e de Faro, tudo cachopas bem apresentadas, diria mesmo, muito bem apresentadas, que vinham carregadas de livros, máquinas fotográficas, equipamentos de mergulho, GOPROs, garrafas de ar, moleskines pretos, e, deduzo, alguma roupinha interior para mudar de quando em vez.
De comida e bebida para a viagem, nada a anotar. Mau, desconfiei, vamos ter de repartir a maior parte das vezes a merenda com as meninas. Mas pronto, a bem da ciência, iniciei os preparativos para largar.

A chefe da equipe das assistentes universitárias  veio falar comigo à ponte, estávamos a ultimar os preparativos para a largada, e perguntou-me como estaria a meteorologia nos próximos dias.
-Srª Doutora, muito agradável, ventos do quadrante norte de força 3 e mar bonançoso de 2 metros.
-2 metros comandante? Qualquer coisa como 2000 mm ?
-Sim srª doutora, 2 metrínhos.
-Não comandante, 2000 mm é muito milímetro, vamos aguardar aqui no porto, bem amarrados ao cais, que a minha equipe não se dá com ondas acima de, para aí, 1000 mm, 1020 mm vá.

Bem, as meninas é que mandavam, encomendei um bacalhauzinho assado num restaurante aqui perto, para mim e para o imediato, mais duas caixas de PapaFigos 2011, pelo sim pelo não, e recolhi à minha camarinha aguardando ordens.

Cinco dias depois, como a meteorologia tivesses melhorado substancialmente, o Mar baixou para 0,5 metros e o vento caiu sem se saber para onde, a doutora autorizou, finalmente, que saíssemos para o Mar, com rumo a um baixio que dista longas 3 milhas do porto, e onde era hábito serem avistados caranguejos marrecos, alvo da investigação da equipe embarcada.

A navegação foi calma, também outra coisa não era de esperar, o baixio ficava na baía de São Jacinto, na Ria de Aveiro, em águas interiores, a curta distancia, felizmente, do restaurante Terminal, afamado pelas suas espetadas de gambas e pelo seu robalo escalado.
Fundeamos alguns metros a sul do baixio e as professoras   iniciaram o seu trabalho, contando as ovas dos caranguejos marrecos que apanhavam com os camaroeiros e anotando, com rigor cientifico, quantas braçadas eles davam para a direita seguidas das braçadas para a esquerda. Enfim, subtilezas do pensamento cientifico que escapam ao entendimento de um velho capitão de longo curso como eu.
Pouco depois a doutora chefe da equipe veio-me pedir para nos aproximarmos mais do baixio.
Bem, esse baixio era de muito má memória para mim e para o imediato sr Bolha pois, há uns anos, tínhamos já lá encalhado com avaria na sanita, tendo sido necessário aliviar carga, retirando todo o merdelim da dita sanita para safarmos o navio, de tal forma que, no fim da operação e apesar de nos termos safado, o merdelim estava por tudo quanto era sítio no navio, incluindo no cabelo dos membros da infortunada  tripulação.
Declinei assim o convite/ordem, com a descrição, rápida, do meu infortúnio naquele baixio e dos riscos que corríamos se para lá nos dirigíssemos.
Mas a doutora foi inflexível, tinham lhe dito que alí encontraríamos uma espécie de caranguejo marreco mais rara e tive de suspender, aproximando o MEXILHÃO, com cuidados redobrados, do fatídico baixio, situado à entrada da baía de São Jacinto.

E, como eu previra, tocamos no fundo.
O Mexilhão estremeceu, roçando no fundo lodoso da laguna, provocando o pânico nas investigadoras e incitando o meu imediato sr Bolha a pegar no megafone e gritar impante e sem necessidade "MULHERES E CRIANÇAS PRIMEIRO"
Claro que o mandei calar, mas já era tarde.
Ali perto, à pesca de carapaus para iscar ao robalo, estava o mestre Tobias na sua pequena lancha.
O Mestre Tobias, vendo as meninas em pânico e aos gritos, veio buscá-las para as conduzir a terra, três a três, em sucessivas viagens, apesar de lhes dizer, às meninas e ao mestre Tobias, que nos safaríamos na próxima maré.
A cara de gozo do mestre Tobias era evidente, para além das garrafeiras e dos presuntos e dos queijos, agora ficava-me com as passageiras.

Passei uma rabecada ao imediato, sr Bolha e lavrei em acta no Diário de Bordo o sucedido.

Valeu-nos as garrafas suplementares de Papafigos 2011 que tinha embarcado em Aveiro e os robalos escalados que mandei  vir do Restaurante Terminal numa das viagens do Mestre Tobias.
Phoenix.